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MADONAS BRASILEIRAS

Museu Inimá de Paula - Belo Horizonte - 2019

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LEONORA WEISSMANN

MADONAS BRASILEIRAS

Museu Inimá de Paula

“O mistério dessa foto feita há 130 anos chega até nós. A imagem de uma união paradoxal mas admitida. Uma união

fundada no amor presente e na violência pregressa. A violência que fendeu a alma da escrava, abrindo o espaço

afetivo que está sendo invadido pelo filho do senhor. Quase todo o Brasil cabe nessa foto.”

Luiz Felipe Alencastro em A história da vida privada no Brasil Vol.2

Tendo iniciado sua produção no início dos anos 2000, Leonora Weissmann é parte de uma geração de artistas que

retoma a pintura de figuração estabelecendo novos parâmetros para a discussão do retrato em tempos de saturação

da imagem e democratização do acesso ao equipamento fotográfico assim como da disseminação de imagens.

Aqui, pouco mais de uma centena de obras entre pinturas sobre tela, têmperas ovo lavadas sobre papel, transferências

de textos, um vídeo e três grandes pinturas que tomam as paredes de parte do espaço expositivo são resultado de um

processo de dedicada imersão na prática da pintura resultando em sua mais recente e inédita produção.

Orientada em torno de três grandes séries, Madonas Brasileiras, Fósseis: Folhas e Ossos e Espaços de Esquecimento,

a seleção de obras preparada oferece um olhar atento e precioso que sintetiza toda a pesquisa da artista nessas quase

duas décadas de intensa produção.

Na série Madonas Brasileiras, que dá título à mostra, pinturas realizadas em variadas técnicas, formatos e suportes

revelam os principais assuntos e interesses de Leonora e que atravessam toda sua carreira. São eles o retrato, a

memória, a família, a maternidade, a apropriação da imagem fotográfica pela pintura, o papel da mulher na construção

da sociedade e sua representação. Em seu trabalho, histórias individuais se tornam representações da coletividade,

estabelecem delicada relação com temas essenciais à construção da nossa identidade.

As Madonas são pinturas realizadas a partir de registros familiares das mulheres escravas conhecidas como Amas de

Leite, um registro perturbador de uma parte dura e violenta de nossa história, da configuração das famílias brasileiras

e que tem intrínseca relação com o processo de sedimentação da família patriarcal presente até os dias de hoje. Essas

imagens carregam tamanha ambivalência pois revelam o servilismo e o afeto, a dureza e a tristeza do olhar dessas

mulheres. A iconografia da mulher negra na sociedade brasileira é fonte material para sua pintura. Ao retrabalhar essas

imagens, que circulavam no âmbito doméstico e hoje se encontram em museus, ela investiga como a fotografia é fonte

imprescindível para o entendimento da historia do país e da formação da família brasileira desde a colonização.

A artista nos oferece um espaço para compreensão da nossa realidade social marcada pela invisibilidade dessas

mulheres e pelo racismo estrutural presente nos dias de hoje.

Nos arquivos encontramos poucos registros fotográficos e em vídeo das amas. As fotografias mostram mulheres

escravas com seus filhos de leite. Geralmente essas mães deixavam seu nicho familiar, seus próprios filhos e eram

alugadas para dar seu leite aos filhos das senhoras. A escrava negra acabava se convertendo em uma segunda mãe,

conhecida como mãe-preta. Elas eram separadas abruptamente de seus filhos que eram depositados na Roda dos

Enjeitados, com a falsa promessa de que, caso as crianças sobrevivessem, estariam livres. Essas mulheres não deram

apenas seu leite e abriram mão forçadamente de seus próprios filhos, elas educaram, influenciaram gerações com

suas histórias, cultura, memórias, práticas religiosas, hábitos e conhecimentos. As mulheres negras atuaram, de

maneira quase invisível, mas eficaz, na formação desse emaranhado de contatos que conformou o cotidiano

desenvolvido entre brancos, negros, indígenas e mestiços na Colônia.

Leonora promove um esgotamento emocional dessas imagens, repetindo-as, desdobrando-as em têmperas lavadas,

dissecando o retrato em sombras, borrões, silhuetas, que se desmancham e se tornam quase invisíveis, onde o olhar

duro que olha a câmera se desfaz assim como nossa memória é levada ao esquecimento. Quem são essas mulheres

que construíram a família brasileira? Pouco se sabe sobre a verdadeira história dessas mães.

Em Fósseis: folhas e ossos, a artista apresenta uma dezena de pinturas em diversos formatos em uma grande

instalação especialmente concebida para a exposição. Três pinturas em grande escala realizadas diretamente nas

paredes do museu recebem outras dezenas de pequenas pinturas sobre tela formando um conjunto de paisagens

estratificadas, duos cromáticos em forma de silhuetas de folhagens e ossadas como um poema sobre resquícios e

camadas de tempo e de memória, vestígios e restos do que antes fora vida em sobreposições de formas e contra-

formas.

 

Espaços de esquecimento é o terceiro trabalho que compõe a exposição e consiste em uma série de páginas,

composições realizadas com a técnica de transferência de imagens e textos apropriados de jornais, revistas, fotografias

e livros, intencionalmente escolhidos como enciclopédias, dicionários, livros de história e científicos, de teorias do

conhecimento. Novamente, várias camadas de como a história é contada são sobrepostas formando uma espécie de

informativo ilegível. Sobreposição do que não é contado.

 

Os três grupos de trabalhos formam um grande corpo, uma única obra/memória, um pensamento em forma de

desdobramentos da prática da pintura.

Ao se apropriar desses misteriosos e complexos registros, Leonora discute com a história da arte, com a representação

das Madonas em diversas culturas e com a representação da mulher e do feminino. Desde o trabalho “Autorretratos

para o novo mundo” (2007 a 2017), a artista estabelece um diálogo com a história visual do Brasil. Na série ela se

apropria de quatro retratos etnográficos emblemáticos de Albert Eckhout, realizados em 1637, onde ele “apresenta” as

mulheres do Novo Mundo: Mulher Tupi, Mulher Mameluca, Mulher Tapuia e Mulher Negra. Leonora se retrata como

essas mulheres na tentativa de abrir a discussão sobre nossas origens, nossas mães índias e negras. Elas pariram o

Brasil. Assim, ela revisita, através da pintura e em uma atitude política, parte importante da história social do país, as

cicatrizes que carregamos e que precisam ser expostas. Propõe a exposição como espaço de reflexão, entendimento

e debate sobre a atualidade através do olhar para o passado - tão presente em nossas carnes - e ao trazer para o

Museu essas mães colocadas à margem da história.

Não é possível manter-se em silêncio diante dessas imagens.

Belo Horizonte, 15 de maio de 2019.

Manu Grossi

Curadora

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