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Estranho Mundo Próximo

 

“É certo, pois que a literatura fala da realidade, mas não de uma realidade familiar, dada pelo mundo cotidiano. O realismo da ficção joga o leitor num mundo de estranhamento, onde não é possível mais se reconhecer. A ficção aparece como inabitual, o insólito, o que não tem relação com esse mundo nem com esse tempo – o outro de todos os mundos, que é sempre distinto do mundo. Mas ao mesmo tempo em que nos retira do mundo, nele nos coloca novamente. E nós o vemos então com outro olhar, pois a realidade criada na obra abre no mundo um horizonte mais vasto, ampliado. Neste sentido, a arte é real e eficaz. Experimentar o outro de todos os mundos e agir no mundo, eis o que a arte nos proporciona. Em O Espaço Literário, afirma Blanchot: ‘A arte é real na obra. A obra é real no mundo, porque aí se realiza, porque ela ajuda a sua realização e só terá sentido no mundo onde o homem será por excelência’”.1

 

A literatura e a pintura falam de uma intimidade exterior. A pintura e o processo criativo, em minha experiência, trazem o desconhecido, o estranho, o estrangeiro. Essa busca por algo que se desconhece é parte fundamental do processo. Aproxima-se de algo estranho que atrai justamente por ser desconhecido.

 

Freud, em seu texto “O Estranho”, de 1919, recorrendo à etimologia do termo alemão Heimlich, argumenta que este termo comporta tanto o sentido de familiar como o de estranho – Unheimlich. O que justamente é mais familiar pode se tornar inquietantemente mais estranho. Segundo Derrida, é um termo “indecidível, que possui valor duplo, dessa forma situa-se além das oposições metafísicas, no espaço entre elas”.2

“O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”.3

Estranho Mundo Próximo abarca trabalhos que envolvem as imagens e arquivos de familiares, amigos, objetos e ídolos, esses últimos tão próximos e tão distantes ao mesmo tempo. Também eu e minha imagem, minha intimidade como mulher, como mãe, artista, e meu cotidiano na arte.

Os rostos aparecem em grandes, médios e pequenos formatos, em um close cinematográfico que estabelece o recorte e aproxima quando é uma miniatura e cabe na palma da mão, ou provoca um distanciamento quando propõe uma escala maior do que a do corpo que observa de fora da pintura.

 Os objetos com os quais convivemos desde sempre, que estão ao nosso redor desde a infância, por exemplo, podem por isso mesmo tronar-se invisíveis. De um instante para o outro, se nos afastarmos desses objetos, como se os víssemos de fora do contexto, os percebemos como se nunca os tivéssemos visto antes. Percebi isso a partir do inventário de meu pai. Vários objetos povoavam meu imaginário de uma forma assustadoramente desconhecida e só os notei quando não tinham mais um objetivo, um lugar. Fora da casa de meu pai, do contexto no qual sempre os vi, tornaram-se outros objetos e passaram a demarcar um passado.

O passado, o futuro e o presente, essas noções cronológicas de tempo, também são estranhos mundos próximos. O presente não pode ser compreendido porque estamos inseridos nele, planejar um futuro é planejar ou pensar um tempo que é sempre totalmente desconhecido e pensar em um passado muitas vezes no qual não nos reconhecemos é bastante comum, como quando se vê uma fotografia de família.

 A morte, tema intimamente ligado aos retratos e sua história, também é um estranho mundo próximo, comum a todos.

 

"Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que nossas ideias e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relação com a morte." 4  

1 Levy, Tatiana Salem. A experiência do Fora, 2003, p. 25-6.

2 Derrida, J. Positions: entretiens. Paris: Ed. Minuit, 1973. p. 60, nota 6.

Freud, S. O estranho [1919], Obras completas. Edição Standard Brasileira, v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1986. p. 237-269.

 

Freud, S. O estranho [1919], op. cit., p. 308.

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